A criação do curso de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), direcionado a integrantes do MST, transformou-se em uma guerra judicial. De um lado, a Universidade, que aposta neste tipo de modelo para reforçar a inclusão, e do outro, as entidades médicas que apontam as distorções e os riscos institucionais.
Sob o guarda-chuva do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), a iniciativa nasceu com a promessa de democratizar o acesso ao ensino superior para um público historicamente marginalizado. Porém, a forma de ingresso — baseada em redação e carta de recomendação, sem o crivo do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ou do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) — acende alertas legítimos.
O Brasil construiu, ao longo das últimas décadas, mecanismos de inclusão no ensino superior que dialogam com a universalidade: cotas sociais e raciais, bônus regionais, reserva de vagas para escolas públicas. Todas essas políticas têm em comum um ponto essencial: atuam dentro do sistema de avaliação nacional, garantindo isonomia e credibilidade acadêmica. O caso de Caruaru rompe com essa lógica, criando um filtro paralelo e restritivo, que substitui critérios objetivos por critérios políticos.
A universidade pública deve ser inclusiva, mas nunca segmentada. Ao transformar o vestibular em carta de recomendação de movimentos sociais, o risco é duplo: compromete-se a legitimidade da seleção e lança-se sombra sobre a qualidade da formação médica que será ofertada.
Incluir não é criar atalhos. Inclusão verdadeira exige reforçar a base educacional, ampliar políticas de permanência e garantir que jovens pobres — do campo ou da cidade — tenham condições reais de disputar em pé de igualdade. Criar cursos sob medida para determinados grupos, sem critérios universais, é abrir mão da própria ideia de universidade.
A UFPE transforma uma causa legítima em experimento ideológico. E quem perde não é apenas a instituição, mas todo o país, que precisa de médicos formados com rigor, não com privilégios travestidos de inclusão. Não se trata de negar a inclusão. Trata-se de perguntar: inclusão a qualquer custo? Políticas públicas devem ser desenhadas para reduzir desigualdades sem romper com a noção de mérito aferido de forma universal. Do contrário, cria-se uma pedagogia da exceção, que alimenta a desconfiança social e enfraquece a própria universidade pública, pilar da ciência e da formação profissional no Brasil.
O debate aberto em Caruaru é, portanto, mais amplo do que o curso em si. Ele toca no futuro das universidades, na credibilidade das políticas afirmativas e na própria noção de justiça social. Se a inclusão for conquistada à custa da isonomia, a conta virá mais cedo ou mais tarde — e será paga justamente pelos que mais precisam de oportunidades reais.
Por Antonio José Gonçalves | Presidente da Associação Paulista de Medicina (APM)